Atualmente, está acontecendo um debate em torno do papel do jornalista e do jornalismo esportivo no mundo da publicidade. A grande questão é: é possível praticar jornalismo independente, de qualidade, exercendo simultaneamente a função de garoto-propaganda? É possível entrevistar um cartola retrógrado e ao mesmo tempo tecer loas a uma lâmina de barbear, sem alterar o tom e a entonação da voz? Como noticiar que um determinado empresário foi preso por estelionato se minutos antes o jornalista deu um testemunho, no ar, a respeito das qualidades dos produtos da empresa que pertence ao acusado? Dá para acreditar nas informações de jornalistas que elogiam sapatos, latas de tintas, planos de saúde e palhas de aço com a mesma desenvoltura com que comentam os lances polêmicos da rodada?
Em 2004, após quatro anos trabalhando no programa Bola na Rede, da RedeTV!, Juca Kfouri foi demitido por continuar se recusando a fazer anúncios testemunhais e merchandising durante o seu programa. Foi imediatamente substituído por Roberto Avallone, recém-demitido da TV Gazeta, onde apresentava o programa Mesa Redonda. Avallone foi substituído no Mesa Redonda por Flavio Prado, que estava comandando o Cartão Verde, na TV Cultura. Prado, um jornalista conhecido pelo comedimento com que falava de produtos comerciais na televisão, agora se diz disposto a abraçar o merchandising por não ver outra opção no horizonte. Ele foi substituído no Cartão Verde justamente por Kfouri, que prossegue com seu compromisso de não misturar informação com publicidade em hipótese alguma.
O jornalista Milton Neves, apresentador do Terceiro Tempo, na Rede Record, é hoje, do ponto de vista comercial, o mais bem-sucedido jornalista esportivo brasileiro. Neves também é contratado da Rádio Jovem Pan, escreve no jornal Agora, na revista Placar e apresenta um programa na TV Assembléia, em São Paulo. Além disso, é dono de uma agência de publicidade, chamada Terceiro Tempo. Ele está processando, na Justiça, vários colegas ilustres, como José Trajano, da ESPN Brasil, e Jorge Kajuru, da TV Bandeirantes. Seu mais recente embate é com Juca Kfouri. Todas as brigas, de certa forma, estão relacionadas a críticas feitas a Neves pela mistura que faz de jornalismo com propaganda.
A confusão entre jornalismo e publicidade atingiu tal ponto nos programas esportivos que a MTV brasileira criou uma atração destinada a parodiar a situação. Rock & Gol, apresentado por Paulo Bonfá e Marco Bianchi, ri dos trejeitos dos “apresentadores-camelôs” e da própria noção de merchandising. Explica Zico Góes, diretor de programação da MTV: “Ao pensar numa paródia de um programa de futebol, era natural que aparecessem elementos característicos da mesa-redonda, e o merchandising é muito característico. Você se inspira no Avallone, que pára uma discussão sobre futebol para falar de um calçado.” Ao longo do programa, Bonfá e Bianchi comem e alardeiam as qualidades de um amendoim da marca “joãoponês”, fictícia, e emendam na propaganda de uma batata frita real. A brincadeira deu tão certo que a emissora chegou a ser sondada por uma empresa sobre a possibilidade de trocar o “joãoponês” por um amendoim de verdade. “Não foi muito à frente, mas confesso que se tivesse uma empresa que falasse: ‘Em vez de joãoponês vocês fazem com o meu’, e se a gente pudesse continuar tirando sarro, eu toparia.”, afirma Góes.
A visão oposta a essa é a da defesa intransigente da separação clara entre o que é jornalismo e o que é publicidade. É a posição que, além de Juca Kfouri, adotam publicamente figuras como Armando Nogueira, José Trajano e Jorge Kajuru, os três atuando, de formas diferentes, no jornalismo esportivo da televisão brasileira.
Também é a posição que o ex-jogador, médico e hoje analista de futebol Tostão, colunista da Folha de S.Paulo. Ele lembra que um dos motivos que o levaram a desistir de comentar partidas de futebol na televisão foi o constrangimento diante das mensagens comerciais que seus colegas falavam durante as transmissões. “É curioso que isso existe, e ninguém fala nada, também no rádio. É uma coisa a ser discutida”, observa Tostão. “É demais. Cada frase, uma propaganda. Acho isso ruim. Não devia existir no rádio”, defende.
No mundo do rádio, a confusão entre jornalismo e publicidade parece ainda maior do que na televisão. E não apenas no segmento do jornalismo esportivo. Jornalistas de outras áreas também fazem testemunhal, publicidade, falam o slogan do patrocinador no ar e recebem por isso. Em grandes rádios de São Paulo, os repórteres, jornalistas conhecidos e âncoras de programas anunciam o slogan dos patrocinadores dos programas ao final da notícia que narram. Há até casos em que os âncoras vendem publicidade e a manutenção do programa no ar depende da venda de anúncios para o horário.
Um caso peculiar nessa disputa é o da Rede Globo. Na questão do merchandising em programas jornalísticos ou praticado por jornalistas, a política é clara. “É norma da casa. Não pode participar”, diz Luís Erlanger, diretor de Central Globo de Comunicação. É verdade que há exceções à regra. Galvão Bueno e Arnaldo Cezar Coelho já fizeram merchandising explícito para um restaurante, em São Paulo, durante o programa Bem Amigos, no canal pago SporTV, da Globo. Mas, de um modo geral, a regra é clara, diz Erlanger: “Imagine um jornalista anunciando um produto que amanhã é objeto do jornalismo da casa. É inconcebível! Ele está anunciando um apartamento e amanhã a gente descobre que o financiamento é furado. É um conflito de interesses.”
Confrontado com a posição da Globo, Milton Neves reage à sua maneira: “Parabéns para a Globo. A Rádio Joven Pan não pensa assim, a Rádio Bandeirantes não pensa assim, a TV Record não pensa assim”
José Trajano teme que os jornalistas que se posicionam contra o merchandising e contra a postura de Milton Neves e companhia estejam ficando em minoria. E faz um alerta: “Eu tenho medo de que isso se alastre cada vez mais e que as novas gerações achem normal, já saiam da faculdade tendo como referência esse tipo de coisa.”
Texto de Maurício Stycer
(publicado na Revista Carta Capital edição 266)
adaptado por Priscilla Oliveira do Carmo
Links com exemplos de publicidade nos programas esportivos: